Monday, April 24, 2006

Remontando a Torre de Babel, ou como Gödel realmente é o cara


Se Deus quisesse ter sido mais eficaz em destruir a comunicação entre as pessoas, devia ter dito "Lhes darei Gödel."

(hoje eu vou tomar a liberdade de expandir todos os parênteses pertinentes à discussão até bem longe, então se certifiquem que vocês têm tempo e vontade de ler até o final)

Linguagem. A definição exata do que é uma linguagem (ou idioma, chamem do que vocês quiserem, pois serve para minha abstração aqui) é bastante nebulosa, mas vamos por ora assumir que basicamente uma língua consiste em um conjunto de instruções que os dois lados do diálogo (podem ser pessoas ou não, como veremos mais adiante) entendem, e, a partir disso, fica possível transmitir informações entre estas partes. Tudo bem, agora temos uma noção "intuitiva" do que é uma linguagem, mas isto não serve para efeito de formalizar algum tipo de conhecimento. Precisaríamos de uma noção mais bem-definida.

Já que não temos esta noção, vamos ao menos tentar fazer com que nosso pseudo-idioma seja no mínimo tão conciso quanto conseguirmos. Para o primeiro mega-parêntese, eu vou tentar explicar porque é desejável termos uma linguagem concisa (ou pelo menos o mais concisa que conseguirmos): Considera-se, atualmente, que todos os homens são iguais, e têm direitos iguais, etc. e tal (note que, apesar de eu a princípio concordar com isso, a história não era bem assim antigamente). Se todos somos iguais, devemos, inicialmente, sermos julgados igualmente por aquilo que fazemos (julgamento neste caso pode ser punição ou bonificação, ou qualquer atividade whatsoever). Para podermos documentar esta idéia de julgamento, criamos convenientemente um ou mais códigos de leis, e estas leis são construídas como expressões estritamente permitidas pela linguagem que utilizamos. Para garantirmos igualdade e "imparcialidade" nestas leis, é bom que tenhamos um idioma conciso e sem ambiguidades.

Passando do motivo para se ter uma linguagem concisa (eu estou abusando do termo de propósito), vamos agora tentar definir exatamente _o que_ determina que uma determinada forma de expressão seja "concisa" (eu _não_ vou dizer completa _nem_ consistente antes da hora). Removendo todos os sinônimos, enfeites e redundâncias que idiomas atuais possuem (não estou tirando o valor deles, tanto pela estética quanto pela flexibilidade; estou somente supondo uma simplificação válida para fins do meu argumento), nos restarão algumas construções lógicas básicas, das quais podemos mostrar alguns exemplos:
Considera-se que é necessário sermos capazes de atribuir valores de "verdadeiro" ou "falso" para determinadas afirmativas, assumimos que nossa construção deve ser capaz de expressar idéias do tipo "Se .... então .... senão ...." (o senão não é obrigatório, mas para fins de clareza ele está aqui), e aceitamos que, para todos os casos, negar algo verdadeiro o torna falso e negar algo falso o torna verdadeiro. Existem muitas outras características que são desejáveis em uma linguagem, mas não é meu papel aqui explicitar todas elas; só quero deixar claro que vou me utilizar de alguns exemplos que não foram mostrados logo aí acima.

Além destas construções simples, queremos (a princípio) uma coisa muito, mas muito importante no nosso idioma: queremos que as afirmativas "verdadeiras" possam ser provadas como tal, e o mesmo para as falsas (que possam ser provadas como tal). Provar neste contexto significa utilizar construções permitidas pelo sistema para concluirmos que, a partir de certas definições, aquilo que queremos provar "é" verdadeiro ou não. Agora só para preencher a cota de conhecimento formal do post de hoje, falemos um pouco sobre os conceitos de completeness (completude ?) e de consistência num sistema lógico formal: Diz-se de um sistema que ele é "completo" quando todas as afirmativas verdadeiras deste sistema podem ser provadas, e diz-se que ele é "consistente" quando _somente_ as afirmativas verdadeiras podem ser provadas (notem a diferença entre os dois conceitos). Naturalmente, o que gostaríamos de ter é um sistema que seja completo, consistente, e ao mesmo tempo poderoso o suficiente para expressar as idéias que queremos transmitir.

Infelizmente, as coisas não são bem assim: No início do século XX, um cara chamado Kurt Gödel mostrou, por um argumento bastante simples até, que qualquer sistema lógico capaz de expressar aritmética é necessariamente incompleto. Caso vocês não tenham ficado chocados com isso, pensem o seguinte: _Todo e qualquer_ sistema lógico que consiga expressar idéias da aritmética (ou seja, um sistema no qual possamos fazer somas e produtos, basicamente) é necessariamente incompleto. O que nos leva para o mega-parêntese 2, que é mais ou menos um esboço da idéia do argumento do Gödel:

Ele começou "recodificando" símbolos simples como "=", "+", "-", entre outros, como sendo certos números (o detalhe de como exatamente ele fez isso é um pouco mais complicado, pois era necessário garantir que cada número representasse um e somente um símbolo e etc e tal, mas a idéia é simples) e deixou os "números" mesmo na expressão como eles estavam. Então ao invés de termos, por exemplo, 6 + 8 = 14, teríamos algo do tipo 6 * 319 * 8 * 1077 * 14 (note que essas multiplicações fui eu que coloquei, e que não fazem parte do argumento verdadeiro. A maneira com que ele "unia" os símbolos na expressão é um pouco mais complicada e não cabe discutir aqui, e também que 319 _não_ é o símbolo certo para "+" e 1077 _não_ é o símbolo certo para "="). Agora, notem que o que antes parecia uma frase esotérica da aritmética foi reduzida a um número (e do jeito que ele organizou seu sistema, em um número único). Este número corresponde a 230.874.336, mas isto não vem ao caso. Agora imaginem que interessante, se eu pegar e escrever uma fórmula do tipo 55 + 230.874.336 = 230.875.391. Em efeito, eu estou adicionando um valor (55) a uma afirmativa, formando assim outra afirmativa. Esta é a grande sacada do trabalho do Gödel: Escrevendo as afirmativas de maneira uniforme, ele foi capaz de criar um sistema onde afirmações podiam "agir" sobre outras afirmações, e com isto ele pöde expressar a seguinte frase: "Esta afirmativa é verdadeira e não pode ser provada". Wow. Acabamos de destruir a completude da aritmética, pois conseguimos mostrar que existem maneiras de se construir, usando a aritmética, afirmações que não podem ser provadas.

Voltando à discussão principal, chegamos à conclusão que qualquer linguagem (ou melhor, qualquer sistema formal) que seja capaz de representar operações aritméticas irá necessariamente ser incompleto. Vamos então à terceira parte do meu argumento (pelo menos eu acho que é a terceira), que trata da comunicação entre pessoas e computadores:

Muito antes da eletricidade, muito antes dos computadores, até muito antes do Gödel, houve outro sujeito que já pensava em assuntos de lógica formal: Este sujeito era o Leibniz, e entre os planos dele estava a de construir um "Logic Mill" (sim, estou roubando descaradamente os termos do Neal Stephenson, mas vocês vão me perdoar :) ), ou seja, uma máquina que fosse capaz de provar teoremas. Como na época não existia tanta tecnologia para implementar a sua idéia, Leibniz acabou passando para a história somente com a "mísera" atribuição de ter conseguido construir uma calculadora mecânica. Em parte, foi sorte dele, pois se ele soubesse que seus "Logic Mills" eram impossíveis por definição, ele não teria ficado muito feliz.

Por outro lado, vamos imaginar o que passaria na cabeça de alguém que quisesse teimar em construir o tal Mill com o seguinte argumento: "Eu faço um programa que recebe um teorema, olha para este teorema e descobre se o teorema pode ser provado. Se ele puder ser provado, meu programa o prova, e se ele não puder ser provado, meu programa me diz que o teorema não pode ser provado". Ironicamente, as pessoas do início do século XX tinham a mania de estragar prazeres, então surgiu um _outro_ chapa, este chamando Alan Turing, que resolveu o entscheidungproblem (bá puxei do fundo do meu alemão). Entscheidungproblem significa, literalmente "Problema da decisão". Ou seja, Turing resolveu o problema se é possível decidir se uma dada afirmação pode ou não ser provada. E não é que o desgraçado mostrou que não tem como decidir!! Ou seja, temos por contribuição do Gödel que nem todas as afirmativas verdadeiras podem ser provadas, e pelo Turing que nós sequer temos como saber quais podem e quais não podem! Nosso objetivo de criar uma linguagem concisa e determinística está indo por água abaixo...

Vamos para o (não sei mais qual número) mega parêntese: É necessário agora distinguir ciência de empirismo (ou empiricismo?) (eu sei que parece não ter nada a ver, mas acreditem em mim, tem). Eu vou aqui definir, para os propósitos do meu argumento, que empirismo trata-se simplesmente de sermos cuidadosos e imparciais em nossas observações de experimentos. Ou seja, trata-se de assumirmos que as coisas seguem um padrão mais ou menos "racional", e trata-se do nosso compromisso de sermos capazes de "contar" (as in one two three four five) as ocorrências de algum ou outro evento. Aumentando a complexidade deste argumento vai eventualmente nos levar até a estatística, que tem como objetivo "catalogar" eventos de forma que possamos fazer observações úteis sobre eles. Eu diferenciei isto de ciência simplesmente para poder dizer que a estatística, como argumento mais complexo deste meu sistema de "contar" as coisas, pode ser aplicada em _qualquer_ área de _qualquer_ coisa. Como ela não se preocupa em encontrar as "razões" metafísicas ou whatever para o acontecimento de alguma coisa, podemos utilizá-la simplesmente para compilar um catálogo de eventos convenientes para nós. A ciência, por outro lado (sim, isto merecia um novo parágrafo, mas é que ainda faz parte do mega parêntese), pelo menos como tem sido praticada até pouco tempo atrás, segue uma orientação estritamente determinista (felizmente hoje em dia se aceita teorias científicas com uma certa dose de eventos randômicos (me corrijam se eu estiver falando besteira, mas me parece que a física quântica é por estas linhas)). Determinismo significa, no sentido mais simples da palavra, que em um sistema S, que aceita como parâmetros as coisas S(p1,p2,p3,p4,p5...), o resultado deste sistema será sempre o mesmo, dados os mesmos parâmetros de entrada. Os pensadores do final do século XIX entendiam que o mundo funcionava desta forma, mas na verdade nada nos garante que realmente _é_ assim (eu acredito nisso, caso alguém se interesse pelas minhas "crenças"). Para completar o parêntese, só vou dizer que os computadores de hoje em dia são máquinas deterministas: se repetirmos o mesmo conjunto de valores na memória de um computador um número arbitrário de vezes, o resultado sempre será o mesmo.

Já vimos que nossa vontade de fazer uma linguagem "perfeita" deve ser redefinida, e aqui em cima vimos um pouco sobre o que é determinismo. O fato é que, para modelar acontecimentos mais complexos no mundo, o modelo determinista simplesmente não funciona muito bem (ou seja, é muito difícil modelar eventos complexos como comportamento de populações, estratégias em jogos, reações biológicas (eu sou teimoso e eu -Não- vou dizer emoções) e etc.). Hmm, acabamos de concluir que uma linguagem "perfeita" não existe, e que a simples idéia de determinismo não é muito desejável para todos os casos. Entretanto, nós somos capazes de conversar uns com os outros de maneira mais ou menos eficiente, usando português, inglês e etc. Como resolver isto? Mostramos que não existe uma linguagem boa, e que o próprio conceito de "ser bom" não é desejável sempre, mas mesmo assim conseguimos conversar, e vocês conseguem entender (or God I hope so ;) ) o que eu estou escrevendo aqui!

Para este grande dilema, existem duas soluções: Ou o homem é dotado de uma característica áurea que o dota da "razão" (por razão eu digo a capacidade de se comunicar e etc. etc., não me encham o saco), ou nós funcionamos com alguma coisa diferente de um sistema determinístico. Eu acredito que a resposta seja a _segunda_ opção, e vou tentar mostrar porque a primeira eh besteira em ainda outro mega parêntese:

Se o ser humano é dotado de alguma coisa "extra" material, quando colocarmos um ser humano em uma situação totalmente devoid de contexto, ele deveria perder sua capacidade de raciocínio. Ou seja, se assumimos que um ser humano é algo além de uma maravilhosa combinação de átomos, quando nós de fato o _reduzirmos_ a esta condição de combinação de átomos, ele deveria perder sua capacidade de raciocínio. Portanto, vou lançar o seguinte gedankenexperiment: Imaginem um homem nu no espaço. Sim, ele não vai sobreviver por muito tempo, mas nos instantes antes do sangue dele ferver etc. etc. e tal, vocês realmente acham que ele perderia sua "razão"? Pois eu acho que não.

O que nos deixa somente com o segundo argumento: As coisas funcionam de uma forma mais ou menos não determinista. E é aí que entra a idéia de um modelo heurístico: Um modelo heurístico é aquele que descreve bem determinado acontecimento para uma certa quantidade de amostras. Ou seja, é uma solução de um problema que não funciona sempre, mas que pode funcionar várias vezes. Não é a solução "ideal" (ou seja, aquela com o melhor resultado no menor tempo), mas é uma que "serve" e pode ser encontrada em tempo razoável. Mas um sistema determinístico não aceitaria esta solução, pois ela não é ideal e nem vem de um modelo de solução "perfeito" (que já vimos exaustivamente que de fato não existe). Portanto, precisamos de um método de tolerância a erros. Precisamos estabelecer alguma coisa que faça com que nós possamos resolver problemas de maneira satisfatória, e de fato ficarmos "satisfeitos" com esta solução. (Comic relief here:) Este método se chama de saco. Falando seriamente agora, quero dizer que acredito que nosso sistema de comunicação, e até mesmo de pensamento, é baseado numa carga gigantesca de experiência (cedida a nós pela boa e velha seleção natural), e esta carga de experiências nos habilita a construir um modelo de soluções que funciona para a grande maioria dos casos, mas definitivamente não para todos, e não da melhor maneira possível.

Para completar, e finalmente _mostrar_ o meu argumento, quero dizer que eu acredito que seja possível se comunicar com computadores (como faríamos com pessoas), mesmo que estes sejam determinísticos. Vejam, não estou dizendo que isto é necessariamente desejável, mas sim meramente possível. Várias soluções de problemas computacionais empregam modelos heurísticos, como o jogo de xadrez (e eu já falei pra vocês em outro post que computadores sabem jogar xadrez), então eu não vejo porque um modelo heurístico de interpretação não possa ser implementado. Claro que o computador _não_ vai poder nos responder 42, e é claro que vão existir algumas coisas que ele não vai entender; mas eu desafio qualquer humano de carne e osso entre vocês a me falar que vocês nunca "não entenderam" alguma coisa. De repente é por causa disto tudo que o HAL 9000 se chama Heuristically programmed Algorithmical Computer, e NÃO É porque HAL == IBM - 1. Oh bollocks...

Sim, este foi o post mais comprido ever, mas vocês foram avisados devidamente.

Friday, April 21, 2006

Libertas quae sera tamem


No dia 21 de abril de 1792, Joaquim José da Silva Xavier foi enforcado no Rio de Janeiro:
"(...) condenam o réu Joaquim José da Silva Xavier, por alcunha o Tiradentes, (...) a que (...) seja conduzido pelas ruas públicas ao lugar da forca, e nela morra morte natural para sempre, e que depois de morto seja cortada a cabeça e levada à Vila Rica, onde no lugar mais público dela será pregada em um poste alto até que o tempo a consuma; o seu corpo será dividido em quatro quartos e pregados em postes pelo caminho de Minas (...) aonde o réu teve as suas infames práticas (...) até que o tempo também os consuma. Declaram ao réu infame, e infame seus filhos e netos (...), e seus bens (...) e a casa em que vivia em Vila Rica será arrasada e salgada, e que nunca mais no chão se edifique, e não sendo próprias, serão avaliadas e pagas ao seu dono pelos bens confiscados, e no mesmo chão se levantará um padrão pelo qual se conserve em memória a infâmia deste abominável réu."
-Autos da devassa da inconfidência Mineira. In: Silvia H. Lara. Pátria amada esquartejada. p. 19

Na derrocada do período colonial brasileiro, surgiam idéias de separatismo e de independência da metrópole portuguesa. Como sabemos, hoje se homenageia a morte de Tiradentes, o líder de um destes movimentos. Este homem, árduo defensor do iluminismo e das idéias proferidas pela independência das treze colônias em 1776 foi considerado, no final do séc. XIX no Brasil como sendo o grande herói nacional. Convenientemente, neste época ele já estava morto, e não causava mais nenhum risco ao governo atual, além de despertar um patriotismo cego e mal-informado no povo brasileiro.

Falemos um pouco sobre a Inconfidência Mineira, o movimento de independência que foi rechaçado com a fúria que vocês leram no trecho acima: Nos anos derradeiros do século XVIII, as idéias Iluministas permeavam todos os centros acadêmicos da Europa e absolutismo estava com seus dias contados, já que a Revolução Francesa atingia seu auge. Do outro lado do Oceano Atlântico, rebeldes haviam decidido que deveriam tomar decisões sobre suas próprias colônias, e passaram a disputar lutas sangrentas com a grande Inglaterra por este direito. Estas conseqüências do século das luzes acabaram por modificar o mundo de diversas formas, obtusas e sutis. As mais obtusas foram as formações de repúblicas, a queda de reis, e o nascimento dos Estados Unidos da América. As modificações sutis, entretanto, vieram na forma de influências intelectuais sobre as pessoas que moravam em lugares mais distantes do centro político e econômico do planeta naqueles tempos (i.e., a Europa).

E é neste contexto que se encaixa o Brasil. Éramos considerados o backwater do mundo, onde portugueses renegados vinham terminar seus dias ou passar férias. Entretanto, em Minas Gerais, havia grande abundância de ouro no solo. Este ouro acabou por fazer duas coias: Os moradores de Vila Rica (Ouro Preto, hoje em dia) eram, de um modo geral, bastante ricos, o que os permitia mandar seus filhos para estudarem em renomadas faculdades no Mundo Velho. A outra conseqüência é que a Coroa Portuguesa olhava para Minas Gerais com ganância, e por isso instituiu pesados impostos sobre a população (o mais famoso destes, a derrama, foi o que desencadeou a conspiração dos inconfidentes). Tiradentes, e muitos de seus conhecidos, foram portanto educados na Europa, e trouxeram de lá o que havia de mais moderno nos campos da filosofia e sociologia. Entretanto, quando se depararam com o sistema antiquado e colonial que governava o Brasil, somado com o abuso tributário a qual Minas Gerais estava submetida, estes homens ficaram revoltadíssimos e decidiram começar a espalhar um grito de independência, sempre por baixo dos meios convencionais, para escapar de julgamentos. Eles pregavam a criação de um estado independente, com capital em São João del Rei, a exploração dos recursos minerais brasileiros para benefĩcio interno, e a construção de uma Universidade. Escritores famosos da época, como o mais renomado Tomás Antônio Gonzaga, e o poeta Cláudio Manoel da Costa, foram rápidos a aderir a esta idéia. Entretanto, por causa de uma traição de dentro da conspiração, seus membros foram julgados e condenados, alguns à forca e alguns à prisão perpétua. O lema da inconfidência, "Libertas quae sera tamem" significa "Liberdade, ainda que tardia", e estaria inscrito na bandeira do país que eles pretendiam formar.

Hoje em dia, Tiradentes é visto como um grande herói nacional, mas somente por que ele está seguramente morto há mais de duzentos anos. Nós com certeza não vivemos em um estado onde os ideiais da inconfidência sejam adotados, e se surgisse outro Joaquim hoje em dia, o governo seria rápido em modificar suas idéias sobre o 21 de Abril (se isto tivesse acontecido 30 anos atrás, eu seria incapaz de falar os horrores aos quais os revolucionários seriam submetidos (alguém aqui _sabe_ como estava o Brasil 30 anos atrás?!))

O que quero dizer é que Tiradentes era um revolucionário verdadeiro, e seu movimento era um de independência genuína. Isto não aconteceu com o Brasil. Por mais cruel que isso possa parecer, algum sangue tem que ser derramado quando uma colônia rompe laços com a metrópole que a controlara. Isto porque, caso contrário, todos os interesses dos governantes anteriores seriam mantidos, e a mudança para o povo da colônia seria completamente irrisória (foi exatamente o que aconteceu no Brasil).

Se festejássemos a independência dia 21 de Abril, e não 7 de Setembro, acredito que nosso país estaria em uma situação muito diferente. Haveria corrupção e haveria miséria, com certeza, mas talvez não neste estado de total impunidade que presenciamos hoje. No mais, eu não concordo explicitamente com os ideiais da Inconfidência Mineira, ou da Conjuração Baiana, ou sequer da Revolução Farroupilha; acredito, entretanto, que qualquer uma destas seria melhor do que o que temos hoje, ou seja, nada. Tiradentes com certeza não era perfeito, e sua posição como herói nacional faz com que muitos fatos de sua vida sejam escondidos pela euforia generalizada, mas acredito que se tivermos que escolher alguém para depositar nossas esperanças de um futuro melhor, com certeza é nele. Pena que ele está morto há mais de dois séculos... que conveniente, não?
--- Seção "Do dia" ---

Denunciando os pequenos absurdos:
Música do dia:
Yes - Somehow, Someday
Piada do dia:
Fato imbecil do dia:
Frase do dia:
"You can lead, you can follow, or you can get out of the way."

Tuesday, April 18, 2006

Leituras Orwellianas



Durante esta semana, li os dois clássicos de George Orwell, 1984 e Animal Farm, respectivamente. Fora o fato de os dois livros serem literariamente fantásticos, uma coisa que me agradou muito no texto dele é que ele evita os conceitos de gramophone minds (termo este do próprio Sr. Orwell). Gramophone minds são aquelas mentes que se contentam em repetir conceitos socialmente aceitos pela maioria, e costumam fazer generalizações simplificadas da verdade. Coisas do tipo "Se sou favorável ao Socialismo, logo não posso criticar nenhum líder socialista." É justamente o oposto que Orwell faz. Assumidamente defensor de um modelo esquerdista, o autor utilizou os dois livros para criticar, de formas mais ou menos sutis, o regime "socialista" da Ex-União Soviética durante as décadas de 30 e 40 (namely, durante o regime totalitário Stalinista). Mas, como sei que não sou um excelente revisor de livros, vou deixar que vocês os leiam e tirem suas próprias conclusões. Ao invés disso, vou tocar em um aspecto um pouco mais específico, presente principalmente no romance mais complexo, o 1984: A questão de entendermos o que acontece quando a própria consciência das pessoas é tampered pelo governo, ou por alguma outra forma de poder legitimizado, em nome de alguma ideologia qualquer.
No caso de 1984, um intenso processo de propaganda, vigilância civil (para os estupidamente iliteratos, o Big Brother surgiu neste livro como um personagem misterioso e de certa forma carismático, que aparece em todas as esquinas e paredes em grandes pôsteres, com uma cara suspeitamente parecida com a do próprio Stalin) e reeducação social faz com que o "Partido" se perpetue no poder em um regime onde até mesmo coisas aparentemente banais como tiques nervosos e murmúrios durante o sono são cuidadosamente catalogados e podem levar à execução sem julgamento no "Ministério do Amor" (Ministry of Love, no original). Este nível de totalitarismo e tirania, por mais desumanizado que possa ser, não surpreende pelas suas características psicológicas. O que deixa os leitores de boca aberta, por outro lado, são os processos que o "Partido" utiliza para manter seus membros e o resto da população sob controle, garantindo assim a perpetuação do Sistema. Com exceção de alguns poucos indivíduos (dentre eles Winston Smith, o personagem principal), a grande maioria do povo (na verdade, a maioria dos membros do Partido, pois a prole em si é completamente abandonada) concorda sinceramente que o sistema do Ingsoc (Ingsoc é a palavra em Newspeak para English Socialism) funciona e deixa todos felizes. Os membros do partido organizam entusiasticamente demonstrações de afeto pelo Big Brother, e crianças engajada no programa Youth Watch entregam seus própios pais para a execução por supostamente cometerem thought crimes. Como é dito no próprio livro, a noção de unidade familiar é conscientemente desmembrada pelo Partido, em nome de sua perpetuação no poder. Outra coisa muito peculiar que o Ingsoc faz é reescrever constantemente a história, fazendo dela o que for conveniente dependendo da época. Por exemplo, quando a Oceania (não o continente. Oceania no livro é uma superpotência mais ou menos delimitada pela união da Inglaterra com as Américas) entra em guerra com a Eastasia (outra superpotência) coloca-se nos arquivos históricos que estes sempre foram os inimigos naturais da Oceania, e que a Eurasia (ainda outra potência do livro) sempre foi aliada. Mas quando esta balança se inverte, os livros prontamente passam a apontar que a Eurasia sempre foi a inimiga da Oceania, e que nenhuma aliança com ela jamais existira.
Detalhes mal contados à parte, fica a idéia do que acontece quando um governo modifica os fundamentos que determinam a própria consciência de um homem: Quando somos internamente convencidos de que algum conceito está certo, por mais desumano que este conceito possa parecer "externamente", quem irá nos dizer, e com que razão, que estamos errados em concordar com ele? Se sinceramente acreditamos em alguma coisa, quem pode nos contradizer?
E se, por exemplo, fosse possível convencer os pobres de que eles são pobres por estado da natureza, e que não é possível nem desejável mudar isso? A nossa mente liberalizada e "iluminista" acredita que isto é uma atrocidade irrefutável, mas se fôssemos educados de forma que acreditássemos sinceramente nestes conceitos, ainda os acharíamos errados? Em outro livro, Brave new World, de Aldous Huxley, vemos exatamente isto: A sociedade é dividida em cinco castas, que se distinguem pela cor de suas roupas, e as castas mais "baixas" são ensinadas desde crianças a admitir sua situação como o estado natural das coisas, e são instruídas quando ainda bebês a acreditar que estão felizes daquela forma.
Agora o que me deixa realmente estupefato é o seguinte: Se toda a sociedade for construída desta forma, de maneira que um certo sistema de governo seja _impresso_ na mente das pessoas (fazendo com que elas verdadeiramente concordem com o sistema), esta sociedade não teria uma grande virtude, por ser concisa e consistente? No caso de 1984 fica fácil de achar um contra argumento, pois, para todas as pessoas que estão fora do "Partido Interno", a vida é notavelmente miserável (por notavelmente, eu me refiro a não ter onde comer, onde morar e outras necessidades quase bestiais. Não chego nem perto a me referir a felicidade, "liberadade" (genuína ou não)). No caso de Brave new World, por outro lado, a pergunta fica mais difusa, pois nesta obra é dito explicitamente que todas as pessoas da sociedade são felizes. A forma que esta felicidade é garantida é algo que para nós parece absolutamente artificial (as pessoas ficam entorpecidas por uma droga chamada Soma), mas o fato de a felicidade ser realmente genuína coloca em cheque os nossos conceitos de liberdade individual. Eu acredito, pessoalmente (esta redundância está aí na verdade para evitar que me fuzilem publicamente nos próximos dias), que não há nada de errado na sociedade visualizada por Aldous Huxley. Como ela parte do pressuposto de que _todas as pessoas são genuinamente felizes_, os "miúdos" de como isto é feito tornam-se secundários. Um detalhe muito importante de se notar é que todos são igualmente felizes, independentemente da sua posição em diferentes castas (se isto não acontecesse, a própria fundação da sociedade seria condenável (ou não, caso as pessoas fossem brain-washed a concordar que privilégios diferenciados para castas fosse uma boa idéia)). O que estava dentro deste segundo parêntese é o que realmente me deixa inquieto (não assustado, mas stirred a pensar mais no assunto): Coisas aparentemente totalitárias como a massificação de conceitos de divisão social _muito_ intrusivos tornam-se "moralmente" viáveis quando passamos a admitir que a consciência das pessoas pode ser engineered. A possibilidade de construir de maneira planejada até mesmo a internalidade de cada um faz com que tenhamos que rever muitas noções fundamentais de liberdade individual, e de busca pela felicidade. Tudo, basicamente, se transforma, quando assumimos que podemos "construir" artificialmente a satisfação interna e sincera dos indivíduos. Provavelmente, a visão cristã conservadora da maioria de vocês (sim, estou me sentindo fingery) irá automaticamente desconsiderar esta possibilidade, dizendo que trata-se da destruição de coisas inalienáveis ao ser humano. Mas eu, fazendo o papel de eterno enchedor de saco, peço que pensem a este respeito com uma mente limpa de conceitos pré estabelecidos: Se uma sociedade parte da premissa inicial de que as pessoas _são_ sempre _*VERDADEIRAMENTE*_ felizes (notem a gigantesca ênfase no verdadeiramente) não seria louvável, independentemente de como esta felicidade é atingida? Eu creio que sim. Eu acredito que a "individualidade" é um conceito secundário que foi utilizado historicamente para garantir a felicidade dos homens que permeavam as sociedades que existiram e exsitem até hoje. No momento em que um modelo de sociedade seja capaz de assegurar a felicidade genuína de seus membros, sem precisar desta individualidade, a mesma se tornará desnecessária.

PS: Hoje estou inaugurando uma nova subseção ali nas "do dia". Refiro-me à "Denunciando os pequenos absurdos". Todo mundo reclama quando aquele desgraçado te fecha numa esquina, quando algum ladrão é impune, quando ficamos sabendo de algum suborno especialmente revoltante, mas raramente alguém publica algo sobre isto. É muito fácil resmungar para o carona do carro, ou para os amigos depois disso, mas estas reclamações não publicadas nunca farão diferença. Pois então estou fazendo meu pequeno esforço para publicar absurdos deste tipo. A internet é o único meio de que _eu_ disponho para fazê-lo, mas se alguém aí for um escritor/jornalista/influente em geral, TRATEM DE PUBLICAR ESSAS COISAS! O povo deve saber o que acontece por aí...
--- Seção "Do dia" ---

Denunciando os pequenos absurdos:
Algum dia desses, na rotatória que encontra a Av. Nilópolis com a Av. Nilo Peçanha e a Av. Carlos Trein Filho (para os portoalegrenses, é aquela perto da Encol), um ônibus da linha 429 (o número do ônibus era 4468), vindo pela Nilo Peçanha no sentido bairro-centro, pegou a faixa mais da direita (reservada aos veículos que desejam entrar à direita na Carlos Trein Filho), e depois utilizou de seu tamanho para fechar todos os carros das faixas do meio e da esquerda para entrar sem fila na rotatória. Isto é uma prática muito comum naquela rotatória, mas não diminuí o absurdo deste comportamento. Aconselho os motoristas da faixa do centro a _não_ dar espaço, sob circunstância _alguma_, a _qualquer_ veículo que tente fazer isto, independentemente de seu tamanho/classe/beleza do(a) motorista. Outra coisa que também podemos fazer é ligar _realmente_ e _seriamente_ para os números de "Como estou dirigindo?". Ganhar deles pelas regras deles é a maneira mais certa, e mais divertida, de se fazer justiça.

Música do dia:
The Who - Pure and Easy
Piada do dia:
Fato imbecil do dia:
Frase do dia:
"All animals are equal, but some animals are more equal than others."
-George Orwell, Animal Farm