Leituras Orwellianas
Durante esta semana, li os dois clássicos de George Orwell, 1984 e Animal Farm, respectivamente. Fora o fato de os dois livros serem literariamente fantásticos, uma coisa que me agradou muito no texto dele é que ele evita os conceitos de gramophone minds (termo este do próprio Sr. Orwell). Gramophone minds são aquelas mentes que se contentam em repetir conceitos socialmente aceitos pela maioria, e costumam fazer generalizações simplificadas da verdade. Coisas do tipo "Se sou favorável ao Socialismo, logo não posso criticar nenhum líder socialista." É justamente o oposto que Orwell faz. Assumidamente defensor de um modelo esquerdista, o autor utilizou os dois livros para criticar, de formas mais ou menos sutis, o regime "socialista" da Ex-União Soviética durante as décadas de 30 e 40 (namely, durante o regime totalitário Stalinista). Mas, como sei que não sou um excelente revisor de livros, vou deixar que vocês os leiam e tirem suas próprias conclusões. Ao invés disso, vou tocar em um aspecto um pouco mais específico, presente principalmente no romance mais complexo, o 1984: A questão de entendermos o que acontece quando a própria consciência das pessoas é tampered pelo governo, ou por alguma outra forma de poder legitimizado, em nome de alguma ideologia qualquer.
No caso de 1984, um intenso processo de propaganda, vigilância civil (para os estupidamente iliteratos, o Big Brother surgiu neste livro como um personagem misterioso e de certa forma carismático, que aparece em todas as esquinas e paredes em grandes pôsteres, com uma cara suspeitamente parecida com a do próprio Stalin) e reeducação social faz com que o "Partido" se perpetue no poder em um regime onde até mesmo coisas aparentemente banais como tiques nervosos e murmúrios durante o sono são cuidadosamente catalogados e podem levar à execução sem julgamento no "Ministério do Amor" (Ministry of Love, no original). Este nível de totalitarismo e tirania, por mais desumanizado que possa ser, não surpreende pelas suas características psicológicas. O que deixa os leitores de boca aberta, por outro lado, são os processos que o "Partido" utiliza para manter seus membros e o resto da população sob controle, garantindo assim a perpetuação do Sistema. Com exceção de alguns poucos indivíduos (dentre eles Winston Smith, o personagem principal), a grande maioria do povo (na verdade, a maioria dos membros do Partido, pois a prole em si é completamente abandonada) concorda sinceramente que o sistema do Ingsoc (Ingsoc é a palavra em Newspeak para English Socialism) funciona e deixa todos felizes. Os membros do partido organizam entusiasticamente demonstrações de afeto pelo Big Brother, e crianças engajada no programa Youth Watch entregam seus própios pais para a execução por supostamente cometerem thought crimes. Como é dito no próprio livro, a noção de unidade familiar é conscientemente desmembrada pelo Partido, em nome de sua perpetuação no poder. Outra coisa muito peculiar que o Ingsoc faz é reescrever constantemente a história, fazendo dela o que for conveniente dependendo da época. Por exemplo, quando a Oceania (não o continente. Oceania no livro é uma superpotência mais ou menos delimitada pela união da Inglaterra com as Américas) entra em guerra com a Eastasia (outra superpotência) coloca-se nos arquivos históricos que estes sempre foram os inimigos naturais da Oceania, e que a Eurasia (ainda outra potência do livro) sempre foi aliada. Mas quando esta balança se inverte, os livros prontamente passam a apontar que a Eurasia sempre foi a inimiga da Oceania, e que nenhuma aliança com ela jamais existira.
Detalhes mal contados à parte, fica a idéia do que acontece quando um governo modifica os fundamentos que determinam a própria consciência de um homem: Quando somos internamente convencidos de que algum conceito está certo, por mais desumano que este conceito possa parecer "externamente", quem irá nos dizer, e com que razão, que estamos errados em concordar com ele? Se sinceramente acreditamos em alguma coisa, quem pode nos contradizer?
E se, por exemplo, fosse possível convencer os pobres de que eles são pobres por estado da natureza, e que não é possível nem desejável mudar isso? A nossa mente liberalizada e "iluminista" acredita que isto é uma atrocidade irrefutável, mas se fôssemos educados de forma que acreditássemos sinceramente nestes conceitos, ainda os acharíamos errados? Em outro livro, Brave new World, de Aldous Huxley, vemos exatamente isto: A sociedade é dividida em cinco castas, que se distinguem pela cor de suas roupas, e as castas mais "baixas" são ensinadas desde crianças a admitir sua situação como o estado natural das coisas, e são instruídas quando ainda bebês a acreditar que estão felizes daquela forma.
Agora o que me deixa realmente estupefato é o seguinte: Se toda a sociedade for construída desta forma, de maneira que um certo sistema de governo seja _impresso_ na mente das pessoas (fazendo com que elas verdadeiramente concordem com o sistema), esta sociedade não teria uma grande virtude, por ser concisa e consistente? No caso de 1984 fica fácil de achar um contra argumento, pois, para todas as pessoas que estão fora do "Partido Interno", a vida é notavelmente miserável (por notavelmente, eu me refiro a não ter onde comer, onde morar e outras necessidades quase bestiais. Não chego nem perto a me referir a felicidade, "liberadade" (genuína ou não)). No caso de Brave new World, por outro lado, a pergunta fica mais difusa, pois nesta obra é dito explicitamente que todas as pessoas da sociedade são felizes. A forma que esta felicidade é garantida é algo que para nós parece absolutamente artificial (as pessoas ficam entorpecidas por uma droga chamada Soma), mas o fato de a felicidade ser realmente genuína coloca em cheque os nossos conceitos de liberdade individual. Eu acredito, pessoalmente (esta redundância está aí na verdade para evitar que me fuzilem publicamente nos próximos dias), que não há nada de errado na sociedade visualizada por Aldous Huxley. Como ela parte do pressuposto de que _todas as pessoas são genuinamente felizes_, os "miúdos" de como isto é feito tornam-se secundários. Um detalhe muito importante de se notar é que todos são igualmente felizes, independentemente da sua posição em diferentes castas (se isto não acontecesse, a própria fundação da sociedade seria condenável (ou não, caso as pessoas fossem brain-washed a concordar que privilégios diferenciados para castas fosse uma boa idéia)). O que estava dentro deste segundo parêntese é o que realmente me deixa inquieto (não assustado, mas stirred a pensar mais no assunto): Coisas aparentemente totalitárias como a massificação de conceitos de divisão social _muito_ intrusivos tornam-se "moralmente" viáveis quando passamos a admitir que a consciência das pessoas pode ser engineered. A possibilidade de construir de maneira planejada até mesmo a internalidade de cada um faz com que tenhamos que rever muitas noções fundamentais de liberdade individual, e de busca pela felicidade. Tudo, basicamente, se transforma, quando assumimos que podemos "construir" artificialmente a satisfação interna e sincera dos indivíduos. Provavelmente, a visão cristã conservadora da maioria de vocês (sim, estou me sentindo fingery) irá automaticamente desconsiderar esta possibilidade, dizendo que trata-se da destruição de coisas inalienáveis ao ser humano. Mas eu, fazendo o papel de eterno enchedor de saco, peço que pensem a este respeito com uma mente limpa de conceitos pré estabelecidos: Se uma sociedade parte da premissa inicial de que as pessoas _são_ sempre _*VERDADEIRAMENTE*_ felizes (notem a gigantesca ênfase no verdadeiramente) não seria louvável, independentemente de como esta felicidade é atingida? Eu creio que sim. Eu acredito que a "individualidade" é um conceito secundário que foi utilizado historicamente para garantir a felicidade dos homens que permeavam as sociedades que existiram e exsitem até hoje. No momento em que um modelo de sociedade seja capaz de assegurar a felicidade genuína de seus membros, sem precisar desta individualidade, a mesma se tornará desnecessária.
No caso de 1984, um intenso processo de propaganda, vigilância civil (para os estupidamente iliteratos, o Big Brother surgiu neste livro como um personagem misterioso e de certa forma carismático, que aparece em todas as esquinas e paredes em grandes pôsteres, com uma cara suspeitamente parecida com a do próprio Stalin) e reeducação social faz com que o "Partido" se perpetue no poder em um regime onde até mesmo coisas aparentemente banais como tiques nervosos e murmúrios durante o sono são cuidadosamente catalogados e podem levar à execução sem julgamento no "Ministério do Amor" (Ministry of Love, no original). Este nível de totalitarismo e tirania, por mais desumanizado que possa ser, não surpreende pelas suas características psicológicas. O que deixa os leitores de boca aberta, por outro lado, são os processos que o "Partido" utiliza para manter seus membros e o resto da população sob controle, garantindo assim a perpetuação do Sistema. Com exceção de alguns poucos indivíduos (dentre eles Winston Smith, o personagem principal), a grande maioria do povo (na verdade, a maioria dos membros do Partido, pois a prole em si é completamente abandonada) concorda sinceramente que o sistema do Ingsoc (Ingsoc é a palavra em Newspeak para English Socialism) funciona e deixa todos felizes. Os membros do partido organizam entusiasticamente demonstrações de afeto pelo Big Brother, e crianças engajada no programa Youth Watch entregam seus própios pais para a execução por supostamente cometerem thought crimes. Como é dito no próprio livro, a noção de unidade familiar é conscientemente desmembrada pelo Partido, em nome de sua perpetuação no poder. Outra coisa muito peculiar que o Ingsoc faz é reescrever constantemente a história, fazendo dela o que for conveniente dependendo da época. Por exemplo, quando a Oceania (não o continente. Oceania no livro é uma superpotência mais ou menos delimitada pela união da Inglaterra com as Américas) entra em guerra com a Eastasia (outra superpotência) coloca-se nos arquivos históricos que estes sempre foram os inimigos naturais da Oceania, e que a Eurasia (ainda outra potência do livro) sempre foi aliada. Mas quando esta balança se inverte, os livros prontamente passam a apontar que a Eurasia sempre foi a inimiga da Oceania, e que nenhuma aliança com ela jamais existira.
Detalhes mal contados à parte, fica a idéia do que acontece quando um governo modifica os fundamentos que determinam a própria consciência de um homem: Quando somos internamente convencidos de que algum conceito está certo, por mais desumano que este conceito possa parecer "externamente", quem irá nos dizer, e com que razão, que estamos errados em concordar com ele? Se sinceramente acreditamos em alguma coisa, quem pode nos contradizer?
E se, por exemplo, fosse possível convencer os pobres de que eles são pobres por estado da natureza, e que não é possível nem desejável mudar isso? A nossa mente liberalizada e "iluminista" acredita que isto é uma atrocidade irrefutável, mas se fôssemos educados de forma que acreditássemos sinceramente nestes conceitos, ainda os acharíamos errados? Em outro livro, Brave new World, de Aldous Huxley, vemos exatamente isto: A sociedade é dividida em cinco castas, que se distinguem pela cor de suas roupas, e as castas mais "baixas" são ensinadas desde crianças a admitir sua situação como o estado natural das coisas, e são instruídas quando ainda bebês a acreditar que estão felizes daquela forma.
Agora o que me deixa realmente estupefato é o seguinte: Se toda a sociedade for construída desta forma, de maneira que um certo sistema de governo seja _impresso_ na mente das pessoas (fazendo com que elas verdadeiramente concordem com o sistema), esta sociedade não teria uma grande virtude, por ser concisa e consistente? No caso de 1984 fica fácil de achar um contra argumento, pois, para todas as pessoas que estão fora do "Partido Interno", a vida é notavelmente miserável (por notavelmente, eu me refiro a não ter onde comer, onde morar e outras necessidades quase bestiais. Não chego nem perto a me referir a felicidade, "liberadade" (genuína ou não)). No caso de Brave new World, por outro lado, a pergunta fica mais difusa, pois nesta obra é dito explicitamente que todas as pessoas da sociedade são felizes. A forma que esta felicidade é garantida é algo que para nós parece absolutamente artificial (as pessoas ficam entorpecidas por uma droga chamada Soma), mas o fato de a felicidade ser realmente genuína coloca em cheque os nossos conceitos de liberdade individual. Eu acredito, pessoalmente (esta redundância está aí na verdade para evitar que me fuzilem publicamente nos próximos dias), que não há nada de errado na sociedade visualizada por Aldous Huxley. Como ela parte do pressuposto de que _todas as pessoas são genuinamente felizes_, os "miúdos" de como isto é feito tornam-se secundários. Um detalhe muito importante de se notar é que todos são igualmente felizes, independentemente da sua posição em diferentes castas (se isto não acontecesse, a própria fundação da sociedade seria condenável (ou não, caso as pessoas fossem brain-washed a concordar que privilégios diferenciados para castas fosse uma boa idéia)). O que estava dentro deste segundo parêntese é o que realmente me deixa inquieto (não assustado, mas stirred a pensar mais no assunto): Coisas aparentemente totalitárias como a massificação de conceitos de divisão social _muito_ intrusivos tornam-se "moralmente" viáveis quando passamos a admitir que a consciência das pessoas pode ser engineered. A possibilidade de construir de maneira planejada até mesmo a internalidade de cada um faz com que tenhamos que rever muitas noções fundamentais de liberdade individual, e de busca pela felicidade. Tudo, basicamente, se transforma, quando assumimos que podemos "construir" artificialmente a satisfação interna e sincera dos indivíduos. Provavelmente, a visão cristã conservadora da maioria de vocês (sim, estou me sentindo fingery) irá automaticamente desconsiderar esta possibilidade, dizendo que trata-se da destruição de coisas inalienáveis ao ser humano. Mas eu, fazendo o papel de eterno enchedor de saco, peço que pensem a este respeito com uma mente limpa de conceitos pré estabelecidos: Se uma sociedade parte da premissa inicial de que as pessoas _são_ sempre _*VERDADEIRAMENTE*_ felizes (notem a gigantesca ênfase no verdadeiramente) não seria louvável, independentemente de como esta felicidade é atingida? Eu creio que sim. Eu acredito que a "individualidade" é um conceito secundário que foi utilizado historicamente para garantir a felicidade dos homens que permeavam as sociedades que existiram e exsitem até hoje. No momento em que um modelo de sociedade seja capaz de assegurar a felicidade genuína de seus membros, sem precisar desta individualidade, a mesma se tornará desnecessária.
PS: Hoje estou inaugurando uma nova subseção ali nas "do dia". Refiro-me à "Denunciando os pequenos absurdos". Todo mundo reclama quando aquele desgraçado te fecha numa esquina, quando algum ladrão é impune, quando ficamos sabendo de algum suborno especialmente revoltante, mas raramente alguém publica algo sobre isto. É muito fácil resmungar para o carona do carro, ou para os amigos depois disso, mas estas reclamações não publicadas nunca farão diferença. Pois então estou fazendo meu pequeno esforço para publicar absurdos deste tipo. A internet é o único meio de que _eu_ disponho para fazê-lo, mas se alguém aí for um escritor/jornalista/influente em geral, TRATEM DE PUBLICAR ESSAS COISAS! O povo deve saber o que acontece por aí...
--- Seção "Do dia" ---Denunciando os pequenos absurdos:
Algum dia desses, na rotatória que encontra a Av. Nilópolis com a Av. Nilo Peçanha e a Av. Carlos Trein Filho (para os portoalegrenses, é aquela perto da Encol), um ônibus da linha 429 (o número do ônibus era 4468), vindo pela Nilo Peçanha no sentido bairro-centro, pegou a faixa mais da direita (reservada aos veículos que desejam entrar à direita na Carlos Trein Filho), e depois utilizou de seu tamanho para fechar todos os carros das faixas do meio e da esquerda para entrar sem fila na rotatória. Isto é uma prática muito comum naquela rotatória, mas não diminuí o absurdo deste comportamento. Aconselho os motoristas da faixa do centro a _não_ dar espaço, sob circunstância _alguma_, a _qualquer_ veículo que tente fazer isto, independentemente de seu tamanho/classe/beleza do(a) motorista. Outra coisa que também podemos fazer é ligar _realmente_ e _seriamente_ para os números de "Como estou dirigindo?". Ganhar deles pelas regras deles é a maneira mais certa, e mais divertida, de se fazer justiça.
Algum dia desses, na rotatória que encontra a Av. Nilópolis com a Av. Nilo Peçanha e a Av. Carlos Trein Filho (para os portoalegrenses, é aquela perto da Encol), um ônibus da linha 429 (o número do ônibus era 4468), vindo pela Nilo Peçanha no sentido bairro-centro, pegou a faixa mais da direita (reservada aos veículos que desejam entrar à direita na Carlos Trein Filho), e depois utilizou de seu tamanho para fechar todos os carros das faixas do meio e da esquerda para entrar sem fila na rotatória. Isto é uma prática muito comum naquela rotatória, mas não diminuí o absurdo deste comportamento. Aconselho os motoristas da faixa do centro a _não_ dar espaço, sob circunstância _alguma_, a _qualquer_ veículo que tente fazer isto, independentemente de seu tamanho/classe/beleza do(a) motorista. Outra coisa que também podemos fazer é ligar _realmente_ e _seriamente_ para os números de "Como estou dirigindo?". Ganhar deles pelas regras deles é a maneira mais certa, e mais divertida, de se fazer justiça.
Música do dia:
The Who - Pure and Easy
Piada do dia:
Fato imbecil do dia:
Frase do dia:
"All animals are equal, but some animals are more equal than others."
-George Orwell, Animal Farm
2 Comments:
Ficando a felicidade garantida para todos os indivíduos, fico imaginando a semelhança desse estado de coisas com um outro estado de coisas, onde também não há mais diferenças entre as partes do sistema: entropia zero (nenhuma troca de energia... inerte... "congelado"...; alguma semelhança com "rigor mortis" do sistema social?)
É verdade... numa sociedade onde todos são absolutamente felizes nunca haverá pressão por mudanças. E particularmente, eu acho que o dinamismo e a constante evolução são aspectos fundamentais da natureza humana. Ou seria isso parte do meu condicionamento cristão? =P
Post a Comment
Subscribe to Post Comments [Atom]
<< Home