Thursday, July 06, 2006

Direito Gödeliano

O post de hoje é pra quem estava convencido de que todo aquele meu papo sobre lógica, sistemas formais e Gödel não serve para absolutamente nada na vida real. Eu até entendo que pode parecer muito difícil interpretar totalmente as conseqüências filosóficas de um resultado que parece ser tão excluisvo das regiões mais esotéricas da matemática. Não se enganem, entretanto; aquilo *é* matemática esotérica, mas isso só a faz mais divertida :). E sim, existem conseqüências filosóficas profundíssimas que surgem deste resultado teórico.
Mas, ao invés de fazer um post gigantesco tentando dar uma visão geral destas características, eu vou escrever um post gigantesco (obviamente, não poderia deixar de ser gigantesco) sobre um exemplo hipotético bem plausível que nos mostra com bastante praticidade o que vem deste resultado obscuro.

Bom. Falando sobre Direito. Existem centenas de Constituições espalhadas pelo mundo, garantindo direitos e deveres diversos aos cidadãos que se submetem a elas, variando sempre de acordo com o contexto cultural no qual estas regras se encontram. Por Constituições, eu quero dizer um conjunto de regras genérico que se aplica às pessoas daquele Estado, e não necessariamente à Constituição Nacional de um país, e por isso vou passar a me referir a este conjunto como constituição, com letra minúscula. A diferença principal é que a minha constituição (ao contrário da Constituição) engloba coisas como o Código Penal, o Código de Trânsito, o Código de Defesa do Consumidor, e quaisquer outros livros que mais ou menos dizem o que as pessoas podem e não podem fazer.

Escrever estas regras em uma constituição é um passo muito importante, mas é somente o primeiro, se queremos construir um sistema em que haja "justiça". O outro passo, e bem mais importante neste sentido, é o de executar e reforçar estas regras. Precisamos de juízes, tribunais, foros, e, para o deleite do Capitalismo, precisamos também de advogados. O problema é que estas pessoas são todas falhas. Juízes podem errar, tribunais podem ser ineficientes, foros podem ser parciais, e advogados podem ser corrompidos (mas já dizia um sábio: "Jamais atribua má-intenções a coisas que podem ser igualmente explicadas por estupidez). Não queremos, idealmente, que os "executores" do nosso sistema sejam falhos. Queremos uma maneira de advocar estas regras que seja inerementemente livre de falhas, algo que seja praticamente mecânico, mas sem entretanto perder a "justiça" que o método atual é capaz de interpretar. Vamos imaginar, então, que nós vamos criar uma nova linguagem (linguagem mesmo, com letras, palavras, e "regras de gramática"). Vamos chamá-la de "Lei e Ordem" (ou "Pernas do Chuck Norris", como queiram). Quando nós recrutarmos os linguistas para construírem esta linguagem, nós vamos ser bem específicos com eles, dizendo que eles só tem as seguintes liberdades:

1- Nós queremos que o conjunto de palavras desta linguagem seja obrigatoriamente finito. Ou seja, um conjunto finito de símbolos deve ser definido para esta linguagem.
2- Nós queremos que estes linguistas definam uma série (também finita) de "frases" básicas, construídas com os símbolos da "Lei e Ordem", que sejam inerentemente "Justas". Ou seja, queremos por exemplo que a frase "Matar é errado" seja traduzida para dentro dos símbolos de Lei e Ordem, de maneira não-ambígua, e sem motivo anterior nenhum. Nós vamos chamar estas primeiras frases de "mandamentos" da Lei e Ordem (ou axiomas, se vocês já sabem para onde estou indo)
3- E finalmente, nós vamos dizer para os linguistas que eles devem construir "regras de gramática" (também um conjunto finito destas regras) que nos permitam pegar uma frase da Lei e Ordem (por exemplo, um dos Mandamentos), aplicar sobre esta frase uma das regras de gramática, e com isso chegarmos em outra frase "válida" de Lei e Ordem. É imprescindível que, inicialmente (eu digo inicialmente porque a grande sacada vai ser mostrar justamente o contrário disso), _todas_ as frases de Lei e Ordem sejam construídas _somente_ se utilizando destas regras, e que nada mais "esperto" seja feito além disso.
4- Além destas regras, nós vamos obrigar os linguistas a desenvolver a Lei e Ordem de forma que somente frases de coisas que não são crimes possam ser expressadas corretamente no idioma. Ou seja, queremos que, por exemplo, a frase "João da Silva matou 150 pessoas com um lança-chamas" simplesmente não possa ser escrita no idioma Lei e Ordem, se pegarmos os Mandamentos e aplicarmos as Regras de Gramática.

Para quem leu o outro post, deve estar bastante óbvio que eu estou tentando criar um sistema formal para descrever a Lei e a Ordem (hence o nome). Com este sistema em mãos, poderemos então pegar um determinado acontecimento, e traduzi-lo para as palavras da Lei e da Ordem. Se conseguirmos chegar a esta "frase" utilizando somente Regras Gramaticais a partir dos Mandamentos, então poderemos dizer com certeza e sem medo, que aquele acontecimento é "Justo". Caso contrário, poderemos dizer que aquele acontecimento é "Injusto".

(Se o leitor está realmente captando o que eu quero mostrar, cabe dizer que na verdade toda esta digressão é na verdade uma tradução quase barata de sistemas formais verdadeiros, cujas "frases" são interpretadas como Verdadeiras (Justo) ou Falsas (Injusto) ).

Voltando à Lei e Ordem. Em princípio, implementar este sistema é uma ótima idéia, pois seria muito fácil programar um computador para interpretar frases e decidir se elas são ou não são Justas, munido dos Mandamentos e das Regras Gramaticais. Como a definição de um sistema formal é bastante restrita, toda a ambiguidade e falibilidade do julgamento "humano" estariam maravilhosamente varridas da nossa decisão.

Imaginem, então, que no início do século XXI, um advogado chamado David Hilbert Jr. inventar de lançar o seguinte desafio aos melhores juristas de plantão: "Me mostre de maneira não ambígua que a Lei e a Ordem são justas para todos os casos." (na verdade ele provavelmente vai perguntar mais outras duas coisas sobre a Lei e a Ordem, mas esta primeira é a que importa mais). Se minhas previsões estiverem corretas, mais ou menos por 2031, um parente do Gödel vai ter uma idéia genial pra derrubar as expectativas de todo mundo, quando ele provar que existem frases Justas na Lei e Ordem que _não podem ser derivadas a partir dos Mandamentos e das Regras Gramaticais_. Ele provavelmente vai fazer isso de maneira muito semelhante a como Gödel mostrou que qualquer sistema formal expressivo o suficiente para tratar da Teoria dos Números é necessariamente incompleto. As palavras da Lei e Ordem poderiam ser substituídas por números, de forma que frases da Lei e Ordem poderiam atuar sobre frases da Lei e Ordem.

Carroleanismos à parte, vamos voltar ao ponto: Se conseguíssemos definir um sistema formal forte o suficiente para "julgar" casos, existiriam necessariamente casos Justos que estariam fora do alcance deste sistema. E a grande sacada do trabalho do Gödel (o verdadeiro, não o parente do parágrafo anterior) é que _qualquer_ sistema formal "suficientemente" expressivo (este conceito de suficientemente é um pouco complicado demais para explicitar aqui) cai necessariamente nas garras do argumento do Gödel, e portanto é necessariamente incompleto. Seja o Principia Mathematica, seja o TNT, seja até mesmo a Lei e a Ordem, o Gödel ganha de todos eles.

Ainda não está impressionado? Imagine então que o cérebro guarda informações de um modo que atualmente consideramos bastante razoável, com alguma forma de símbolos e manipulações. Se assumirmos que estas manipulações são "mecânicas" e "restritas", não fica difícil bolarmos um sistema formal que represente as coisas "sabíveis" pelo cérebro. Pois então pense nisso: Irão existir necessariamente coisas Verdadeiras que não são Sabíveis!

Deste ponto em diante, existem duas vertentes de pensamento muito proeminentes: Uma que simplesmente joga a toalha, e diz que o raciocínio humano "transcende" qualquer regra descritível (já que nós conseguimos viver sem sermos atormentados pelo problema do Gödel), e outra que simplesmente diz que de repente o funcionamento da cabeça não é tão simples quanto um sistema formal. A primeira, que segue suspiciously o lema "Penso, logo existo", leva à necessária conclusão de que a verdadeira Inteligência Artificial é impossível. Pessoalmente, eu discordo disso. Sou partidário da segunda linha de pensamento, que diz simplesmente que inteligência é emulável, mas não a traduzindo em um sistema formal. É algo simplesmente antropocêntrico demais pensar que a inteligência é uma característica "etérea", presente exclusivamente nos seres humanos.

Só uma pequena retomada à Lei e Ordem, antes de acabar o post. Depois de provarmos que a Lei e Ordem não é perfeita, teremos realmente "derrubado" a computadorização dos processos de julgamento, ou ainda, teremos destruído todas as esperanças de máquinas um dia desempenharem papéis mais importantes do que empurradores de metal sofisticadas? Eu acho que não. Por que? Porque é bastante óbvio que a lei e ordem (notem o uso de letras minúsculas) que guiam nossa sociedade atualmente também são obviamente imperfeitas, e nem por isso dizemos "Vamos destruir os foros e tribunais, matar os juízes e advogados, porque eles são inerentemente incapazes de fazer o serviço direito" (apesar de que as vezes dá vontade).

E ah sim! Deixem de ser idiotas e leiam o post sobre o Gödel, diabos!
--- Seção "Do dia" ---

Música do dia:
Dire Straits - Brothers in Arms
Fato imbecil do dia:
Frase do dia:
"GlooP is a myth"
-Douglas R. Hofstadter

8 Comments:

Anonymous Anonymous said...

A respeito deste e outros posts anteriores:

A diferença é que são os humanos que criam o computador, e não o inverso. O computador "pensante" é uma versão Dt* atrasada em relação ao estado de avanço mental do humano que o criou. Mesmo que se imagine programar no computador o processo criativo (ou seu simulacro digital, mais precisamente), a mente capaz de CONCEBER, SINTETIZAR e CODIFICAR tal processo está à frente da "mente" que reproduz o processo seguindo ordens previamente definidas.

Os computadores podem ser mais rápidos (tomara que o sejam mesmo, pois essa é uma das razões pelas quais pagamos por eles o preço que custam), mas o resultado que produzirão será fruto da criação original do seu criador (ou do criador de seu criador, ad infinitum, caso alguém esteja pensando em programar computadores para programar computadores)...

* onde Dt pode ser um infinitésimo de tempo tão pequeno quanto se queira; o fato é que o limite de Dt, quando a arrogância da AI tende a infinito, é ZERO, ou seja, o criador SEMPRE estará, no tempo, à frente da criatura.

9:36 AM  
Blogger Paulo Becker said...

Esse argumento não faz muito sentido, pois se fosse verdade, a Evolução da vida na Terra não teria sido possível ¬_¬'

5:39 PM  
Blogger Paulo Becker said...

This comment has been removed by a blog administrator.

5:41 PM  
Blogger Paulo Becker said...

Nossa, eu escrevi Evolução com "E" maiúsculo sem querer. Parece tão religioso assim... Anyway, o argumento ao qual estava me referindo obviamente é o do comentário acima, e não o do post no blog, para os que estavam na dúvida.

(malditos erros de digitação)

5:43 PM  
Blogger Fabio Camacho said...

muito bom. e quase inteiramente claro pra mim!

quanto ao primeiro comentário, só me parece muito arriscado presumirmos conhecer exatamente a natureza dos nossos processos de planejamento e concepção... ou de qualquer um de nossos processor cognitivos, na verdade.

7:57 PM  
Blogger Paulo Becker said...

So I guess no more postings. EVER. Ok, so long and thanks for all the fish.

3:41 PM  
Blogger gllima said...

Bah!

Muito boa a analogia com Gödel.
Ainda mais agora que sou semi-periro em Gödel graças ao trabalho de lógica.

Mas, será que existe algum procedimento que possa decidir quais as sentenças da gramática Lei e Ordem podem ser provadas ou não?

[hehe]

Referente ao final do post. Abomino a "idéia" que a inteligência é algo "etéreo", e também penso que o pensamento humano não é algo tão trivial a ponto de ser organizado em uma linguagem formal.

Quem sabe daqui uns anos,Luiz Fernando Scheidegger desenvolva alguma forma de "sistematizar" o pensamento humano o/

11:42 PM  
Anonymous Anonymous said...

Colocando mais lenha na reflexão, com opiniões não necessariamente lógicas ou sobre o tema... eheheh

Ao pensar em direito penal, no qual as condutas descritas são, em sua maioria, acreditadas como ilegais: matar, roubar, etc., torna-se bem mais fácil dar contorno e apontar, com as suas devidas ressalvas (legítima defesa, ausência de culpabilidade, etc) as condutas puníveis e criar a tal linguagem.

O mesmo não acontece quando se fala em conflitos de pessoas privadas, muitas vezes nas quais ambas agem de "maneira duvidosa"! Nesse caso, não acredito que possa haver falha ou injustiça, mas apenas um conflito de interesse, pessoas que pensaram diferentes formas de defender o seu próprio umbigo em detrimento das demais (coisa egoísta, perfeitamente cabível ao comportamento humano).

Então, nesses casos, o Direito irá produzir decisões injustas, mas acima de tudo decisões! Pois antes mesmo de dar a justiça, o Direito se propõe a dar estabilidade às relações, segurança, para que determinadas condutas possam existir, permitindo que as pessoas se enquadrem ou não a elas. Além do mais, justiça é juizo de valor, coisa pessoal, tipo gosto e bunda - cada um tem o seu (a sua).

Exemplinho cretino: Cassações com voto secreto: absurdo?! Nem tanto! Pois além de estar constituicionalmente permitida (referindo-me a Constituição Federal), eu arriscaria, até, dizer que a cassação do Luiz Estevão só ocorreu por conta do mesmo processo de voto secreto.

Encurtando o papo: a tal linguagem falharia, assim como as leis falham. Pois não seria (assim como não é) possivel "prever" todas as artimanhas e elocubrações advindas da astúcia humana e ao mesmo tempo fornecer a tal da "segurança juridica" para que se estabeleçam as relações e para que as pessoas possam reclamar seus direito quando se acharem injustiçadas.

1:11 PM  

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